terça-feira, 5 de outubro de 2010

Ao contrário do que alguns pensam, os animais não são seres estranhos ao homem, apenas porque apresentam forma física e comportamento diverso. Homem e animais fazem parte do que chamamos eco-sistema, ou seja, um conjunto harmônico e milenar de convivência, absolutamente necessário para a manutenção da qualidade de vida no planeta. A nossa Constituição, em seu artigo 225, prega o direito de todos a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo, essencial à sadia qualidade de vida, sendo obrigação do Poder Público fiscalizar atividades que possam submeter animais a crueldade. A Lei 9.605/98, em seu artigo 32, considera crime praticar atos de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos, com pena de três meses a um ano e multa, mesmo que o dano seja resultado de experiência com fins didáticos. Porém, não é crime o abate de animal, artigo 37 da lei referida, quando realizado em estado de necessidade - para saciar a fome do agente ou de sua família, e mesmo assim apenas em situações de extrema penúria e absoluta impossibilidade de obtenção de outro alimento, para proteger lavouras, pomares e rebanhos da ação destruidora de animais, desde que legal e expressamente autorizado pela autoridade competente, e por ser nocivo o animal, desde que assim se caracterize pelo órgão competente. Ou seja, o cidadão desprovido de autoridade ambiental, por maior que seja eventualmente seu conhecimento técnico, não pode tomar a iniciativa de abater o animal por que, na sua concepção, ele possa ser nocivo, pois esta é uma situação que deve ser examinada por autoridade ambiental. Esta, por sua vez, tomará todos os cuidados para que o abate não seja apenas a realização de uma vontade pessoal de quem a requer, como forma de livrar-se do animal, obter vantagens econômicas ou saciar sentimentos menos nobres. Por fim, como “tudo que o homem fizer a terra fará aos filhos da terra”, qualquer ato de crueldade contra animais deve merecer nosso mais veemente repúdio. Em razão disto, o Ministério Público, a quem a lei dá a tutela judicial dos animais, está e sempre estará atento às tentativas de reduzir estes seres a objetos, uma vez que são sujeitos de direito, cabendo a todos e a cada um sua proteção.
Por João Marcos Adede y Castro
Promotor de Justiça

domingo, 21 de março de 2010

1 - Introdução

Sempre que um crime bárbaro toma conta das manchetes dos noticiários ressurgem os debates acerca da possibilidade de adoção da pena de morte pelo Brasil. Os favoráveis à pena capital argumentam que tal medida é necessária para combater severamente a criminalidade organizada. Sustentam, ainda, que o ordenamento jurídico pátrio adota a pena de morte em situações excepcionais, ou seja, em caso de crimes militares em tempo de guerra. Logo, uma eventual emenda constitucional seria instrumento legítimo para estender a aplicação da pena de morte a outros delitos.
Por outro lado, uma corrente contrária defende que não existe comprovação empírica de que a pena de morte seja instrumento idôneo a propiciar a diminuição da criminalidade nos locais onde adotada. Frequentemente, citam o exemplo norte-americano, em que os estados que adotam a pena capital não registram índices de criminalidade violenta inferiores em relação àqueles que não a admitem. Ainda, alegam que o ordenamento jurídico brasileiro não comporta a adoção da pena de morte, sequer por meio de emenda constitucional. Isso porque o art. 60, §4°, da Constituição da República, estabelece que não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir os direitos e garantias individuais. Logo, consistindo a pena de morte em uma restrição flagrante ao direito à vida, não haveria como a medida ser implementada no Brasil.
Contudo, o presente trabalho não tem por objetivo analisar a posição de cada uma das correntes mencionadas acima. Não se pretende concluir se a pena de morte tem eficácia no combate ao crime, ou se a matéria pode vir a ser objeto de emenda constitucional. O que se pretende nesse estudo é pesquisar se a pena de morte, em qualquer uma de suas formas de execução, pode ser acolhida pelo ordenamento jurídico nacional. Ou seja, parte-se do princípio de que a instituição da pena de morte não viola a CR/88. Passa-se a perquirir, assim, se os métodos de execução da pena de morte podem ser considerados constitucionais.
Em outras palavras, o curso tem por objeto responder à seguinte pergunta: se a pena de morte for instituída no Brasil, existe algum meio de execução dessa sanção que possa ser considerado constitucional?
2 - Princípio da Humanidade
Segundo Bittencourt (2003, p.15), "o princípio da humanidade do Direito Penal é o maior entrave para a adoção da pena capital e da prisão perpétua. Esse princípio sustenta que o poder punitivo estatal não pode aplicar sanções que atinjam a dignidade da pessoa humana ou que lesionem a constituição físico-psíquica dos condenados".A consagração do princípio da humanidade nos remete ao relatório de uma comissão inglesa sobre pena de morte, a chamada Royal Commission on Capital Punishment. De acordo com esses trabalhos, a execução da pena de morte exige a presença de três requisitos: humanidade, certeza e decência.

A humanidade se refere à técnica adotada na execução da pena, que deve matar o condenado sem aflição e sem dor.Entende-se certeza como a necessidade de que o meio escolhido para a execução venha a ceifar a vida do condenado de forma imediata, sem interrupções ou problemas operacionais.Por fim, decência significa dignidade, ou seja, deve-se evitar o excesso de brutalidade, a mutilação e a deformação do corpo do cidadão.

Como se vê a partir dos conceitos transcritos acima, o princípio da humanidade se encontra intimamente ligado às conclusões da Royal Commission on Capital Punishment. Logo, pode-se afirmar que o princípio da humanidade somente estará respeitado, no que tange à execução da pena de morte, se os critérios expostos estiverem atendidos.Muitos podem se perguntar: "O ladrão e o estuprador não têm a menor piedade de suas vítimas. Por que o Estado tem de ser piedoso ao executar a pena de morte?". A resposta é simples. Afinal, em um Estado Democrático de Direito, o Estado não pode matar como se fosse um estuprador ou um ladrão. Não se pode diminuir direitos e garantias fundamentais como forma de garantir um Estado Democrático de Direito que zela por tais conquistas. Ou seja, se o Estado se comportar de forma criminosa contra o criminoso, estará caindo em contradição.
3 - Formas de Execução
As principais formas de execução da pena capital conhecidas pelo homem são as seguintes: enforcamento, fuzilamento, injeção letal, decapitação, câmara de gás e cadeira elétrica.O enforcamento foi um dos meios mais utilizados pela humanidade na execução da pena de morte. Para se ter uma idéia, somente em 1969 a Inglaterra aboliu os enforcamentos. A técnica consiste no seguinte: o carrasco coloca um capuz na cabeça do condenado, e passa-lhe uma corda no pescoço (nos Estados Unidos, passava-se pela orelha). Então, abre-se um alçapão de forma que o corpo do condenado caia. O objetivo é fazer com que a queda abrupta provoque a ruptura da medula, com a conseqüente perda de consciência por parte do réu.

Entretanto, há inconvenientes. Se o carrasco erra o cálculo da queda "para menos", a morte se dá por asfixia. Trata-se de espetáculo deprimente, em que o condenado sofre e se contorce por vários minutos até a superveniência de sua morte. Viola, portanto, o requisito de humanidade exigido pela Royal Comission on Capital Punishment. Todavia, se o erro é "para mais", existe a forte possibilidade de que a cabeça do condenado seja arrancada. Infringe-se, nesse caso, o requisito da decência.

Ainda, deve-se ressaltar que existem vários relatos de enforcados que foram reanimados, bem como de outros cujos corações permaneceram batendo por quase vinte minutos após o enforcamento. Até por isso, na Inglaterra, surgiu o costume de deixar o corpo pendurado, por no mínimo uma hora, antes de ser retirado.

O ordenamento jurídico brasileiro admite a pena capital na hipótese de crimes militares em tempo de guerra. A execução, nos termos do Código de Processo Penal Militar, se dá por meio de fuzilamento. Dois são os principais problemas encontrados na morte por fuzilamento. Em primeiro lugar, existe a possibilidade de que o condenado receba vários disparos que não vêm a atingir região letal. Logo, fere-se o requisito da certeza. Alguns ordenamentos, para evitar esse problema, adotam um tiro de misericórdia, desferido pelo líder do pelotão contra o crânio do réu. Não parece sequer necessário mencionar que um tiro à queima roupa contra a cabeça do condenado tem o condão de lhe desfigurar por completo a face. Assim, acaba por se infringir o critério da decência.
A injeção letal se apresenta, à primeira vista, como o método de execução que mais parece se adequar às exigências da Royal Comission on Capital Punishment e ao princípio da humanidade. O problema, nesse caso, se encontra na resistência da própria classe médica, que se recusa a transformar seu papel de salvar vidas em uma função de carrasco. Essa resistência surgiu desde a primeira lei que institui a injeção letal, em Oklahoma, nos EUA. A Associação Médica Britânica, inclusive, chegou a se manifestar no sentido de que nenhum médico deverá tomar parte na morte de um condenado.
A decapitação, pela sua própria natureza, pode ser considerada como um meio de execução que viola o critério da decência. Afinal, o pressuposto básico da decapitação consiste na separação da cabeça do réu do resto do corpo. Mais que isso, a história registra ainda alguns incidentes desagradáveis. Lâminas pouco afiadas somadas a réus com pescoços grossos faziam com que determinadas execuções somente terminassem após vários golpes de lâminas. Ou seja, sucessivos golpes eram dados contra o pescoço do condenado, que pouco a pouco a pouco tinha sua cabeça arrancada. Dessa forma, não se pode falar em certeza, pois a execução é passível de ser interrompida por indefinidas vezes.

A humanidade ficou marcada pelas atrocidades cometidas pelos nazistas durante a 2ª Guerra Mundial. Milhares de judeus foram covardemente mortos sob as ordens de Hitler, muitos deles em verdadeiros extermínios cometidos por meio da câmara de gás. Destarte, a câmara de gás passou a carregar consigo uma pesada conotação política, motivo pelo qual foi abolida da esmagadora maioria dos países que ainda adotam a pena capital. Além disso, existem diversos relatos em que o réu não sofre perda de consciência imediata, morrendo em decorrência de um longo e doloroso processo de asfixia. Desrespeitado, portanto o critério da humanidade.

Por fim, tem-se a cadeira elétrica. Trata-se de método amplamente adotado nos países ocidentais que admitem a pena de morte, mormente nos Estados Unidos da América. Contudo, consiste no procedimento que mais fere o princípio da humanidade e os critérios da Royal Comission on Capital Punishment.

O condenado à cadeira elétrica recebe em média 4 (quatro) descargas de energia em curtíssimos intervalos. Cada uma delas varia entre 500 e 2.000 volts. Tais descargas muitas vezes provocam queimaduras no rosto e nas pernas do réu, locais onde são colocados os eletrodos. Outro inconveniente relatado pelas testemunhas das execuções se encontra na fumaça e no cheiro de carne queimada que invade a sala de execução. Mas esses são apenas os menores dos males. Há relatos de réus que não morrem com as primeiras descargas sucessivas. Logo, o médico se aproxima, checa o pulso do condenado, verifica que o mesmo ainda está vivo, e autoriza mais uma série de descargas. Frequentemente alguns réus têm seu suplício estendido para até 3 (três) séries de descargas elétricas, donde se conclui que o método não se amolda ao requisito da certeza.

Aumentar a voltagem seria uma saída para adequar o método ao critério da certeza? Sim. Entretanto, uma descarga de mais de 10.000 volts, por exemplo, queimaria por completo o corpo do réu, deixando-o irreconhecível. Nesse caso, estaria ferido o critério da decência.
4 - Conclusão
O princípio da humanidade, consagrado pela CR/88, veda a possibilidade de criação e aplicação de penas que atentem contra a dignidade humana (PRADO, 2004). Logo, ainda que se entenda que a pena de morte em si, como instituto, não viola os direitos fundamentais previstos na Carta Magna brasileira, não existe qualquer modo de execução da pena capital que não ofenda o princípio da humanidade. Consequentemente, conclui-se que não existe qualquer forma de execução da pena de morte que possa ser considerada constitucional.

Obs: Esse curso foi inspirado na obra do Professor Nilo Batista, que em seu livro Punidos e Mal Pagos (ed. Revan), traz uma das mais brilhantes reflexões sobre a pena de morte já produzidas pela doutrina brasileira.Obs2: Outras informações sobre a Royal Commission on Capital Punishment podem ser encontradas no site
http://www.bopcris.ac.uk/bopall/ref9738.html.
Este artigo foi inscrito por : Thiago Lauria*
*Advogado atuante no Escritório Leonardo Isaac Yarochewsky Advogados Associados. Mestrando em Direito Processual Penal pela UFMG. Especialista em Ciências Penais pela UGF. Graduado em Direito pela UFMG.Professor de Direito Penal da Faculdade Metropolitana.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Técnicas comuns de interrogatório:

O moderno interrogatório é um estudo da natureza humana. A maioria de nós demonstra uma tendência para se abrir com pessoas que se parecem com a gente. É difícil parar uma vez que tenhamos começado a falar, e quando começamos a dizer a verdade, é difícil começar a querer mentir. Quando um policial diz que encontraram nossas impressões digitais na maçaneta interna de uma casa que foi assaltada dois dias atrás, ficamos nervosos mesmo se estávamos usando luvas durante o tempo que permanecemos ali dentro.

Salvo raras exceções, os policiais têm autorização para mentir a fim de fazer que um suspeito confesse alguma coisa. A lógica é que o inocente jamais confessará um crime que não cometeu mesmo se for confrontado com falsas evidências físicas que apontam seu envolvimento. Infelizmente nem sempre é assim (saberemos mais sobre confissões falsas na próxima seção), mas isso explica grande parte das razões por que a polícia tem permissão para empregar táticas enganosas nos interrogatórios.

A manipulação psicológica começa antes mesmo de o interrogador abrir a boca. O arranjo físico da sala de interrogatório é projetado para maximizar o desconforto e sensação de impotência do suspeito a partir do momento em que a pessoa entra ali. O clássico manual de "Interrogatório e Confissões Criminais" recomenda a utilização de uma sala pequena, com isolamento acústico e apenas três cadeiras (duas para os investigadores e uma para o suspeito), uma mesa e nada nas paredes. Isso cria um senso de exposição, estranheza e isolamento que aumenta a sensação de "tirem-me daqui" experimentada pelo suspeito durante o interrogatório.

O manual sugere também que o suspeito deve ser acomodado numa cadeira desconfortável, fora do alcance de controles como interruptores de luz ou termostatos, o que aumentará ainda mais o seu desconforto e criará um clima de dependência. Um espelho falso é um acréscimo ideal ao ambiente, pois aumenta a ansiedade do suspeito e permite que outros investigadores observem o processo e ajudem o investigador responsável a descobrir que técnicas estão funcionando ou não.

Antes de começar a técnica de nove passos de interrogatório de Reid, procede-se a uma entrevista inicial para se tentar definir a culpa ou inocência da pessoa. Durante esse tempo, o investigador tenta estabelecer uma ligação com o suspeito, geralmente valendo-se de conversas descontraídas que criam uma atmosfera livre de intimidação. Como as pessoas tendem a se identificar e confiar em quem se parece com elas, o investigador pode dizer que compartilha alguns dos interesses e crenças do suspeito. O objetivo aqui é fazê-lo começar falando de trivialidades, pois assim será mais difícil parar de falar (ou de começar a mentir) depois, quando a discussão se voltar para o crime.



Durante essa conversa inicial, o investigador observa as reações do suspeito - tanto verbais quanto não-verbais - para definir uma reação comparativa antes que a pressão de verdade comece a aparecer. Posteriormente, o investigador usará esse parâmetro como ponto de partida para comparações.

Um dos métodos usados para criar um comparativo consiste de perguntas feitas para que o suspeito acesse diferentes partes de seu cérebro. O investigador faz perguntas amigáveis que exigem recurso à memória (simples recordação) e perguntas que exigem raciocínio (criatividade). Quando o suspeito está se lembrando de alguma coisa, seus olhos em geral se moverão para o lado direito. Isso é apenas uma manifestação exterior de que seu cérebro está ativando o centro de memória. Quando ele está raciocinando sobre alguma coisa, seus olhos podem mover-se para cima ou para a esquerda, refletindo assim a ativação do centro cognitivo. O investigador então toma nota mental para se lembrar da atividade ocular do suspeito.

O próximo passo é dirigir as perguntas para o assunto em questão. O investigador fará perguntas básicas sobre o crime e cruzará as reações do suspeito com o comparativo para determinar se o suspeito está dizendo a verdade ou mentindo. Se o interrogador perguntar ao suspeito onde ele estava na noite do crime e este responder de forma honesta, ele estará utilizando sua memória, portanto seus olhos podem mover-se para a direita; se estiver criando um álibi, estará raciocinando e seus olhos poderão mover-se para a esquerda. Se o interrogador determinar que as reações do suspeito indicam malícia, e se todas as demais provas apontam para sua culpa, tem início o interrogatório de um suspeito culpado.

A técnica de Reid é a base do afamado manual de "Interrogatório e Confissões Criminais" que já mencionamos. Ela descreve nove passos ou tópicos que servem para conduzir um interrogatório. Alguns desses passos se confundem, e não existe um interrogatório "padrão"; no entanto, a técnica de Reid oferece um esboço de como o desenrolar do interrogatório pode ser bem-sucedido.

  1. Confrontação
    O investigador apresenta os fatos do caso e diz ao suspeito que há provas contra ele. Estas provas podem ser reais ou podem ter sido inventadas. Via de regra, o investigador afirma categoricamente que a pessoa está envolvida no crime. O nível de estresse do suspeito começa a subir, sendo que o interrogador pode começar a se movimentar pela sala e invadir o espaço pessoal do suspeito para aumentar sua sensação de desconforto.
  1. Se o suspeito começar a se inquietar, passar a língua pelos lábios ou ficar se arrumando (por exemplo, passando a mão pelos cabelos), o investigador interpreta esses fatos como sinais de mentira e sabe que está indo na direção certa.

  2. Desenvolvimento de um enredo
    O interrogador cria uma história em torno dos motivos que o suspeito teria para cometer o crime. Desenvolver um enredo exige olhar nos olhos do suspeito para descobrir por que ele fez o que fez, qual seu pretexto preferido e que tipo de desculpa poderá fazer com que admita a prática do crime. O suspeito usa algum tipo específico de raciocínio com mais freqüência do que outros? Por exemplo, será que ele está disposto a jogar a culpa na vítima? O interrogador traça um esboço, uma história, à qual o suspeito pode se agarrar para arrumar uma desculpa ou justificar sua participação no crime, e a partir daí passa a observar o suspeito para ver se ele gosta daquele enredo. O suspeito está prestando mais atenção do que antes? Ele está balançando a cabeça afirmativamente? Caso positivo, o investigador continuará a expandir aquele enredo; caso contrário, ele começa tudo de novo com um novo enredo. O desenvolvimento de um enredo acontece em segundo plano durante todo o interrogatório. Quando desenvolve enredos, o interrogador fala com uma voz suave, tranqüila, para passar uma imagem amigável e tranqüilizar o suspeito com um falso senso de segurança.
  3. Barrar as negativas
    Deixar que um suspeito negue sua culpa aumentará sua confiança, portanto o investigador tentará barrar todas as negativas. Às vezes ele diz ao suspeito que logo será sua vez de falar mas que, por ora, terá de ficar escutando. O investigador vigia as negativas desde o começo do interrogatório e interrompe o suspeito antes que este possa expressá-las. Além de manter baixo o nível de confiança do suspeito, barrar suas negativas também pode ajudar a acalmá-lo para que não tenha a chance de pedir a presença de um advogado. Se não ocorrer nenhuma negativa durante o desenvolvimento do enredo, o investigador assume que há um possível indicador de culpa. Se as primeiras tentativas de negação diminuem ou são barradas no decorrer do enredo, o interrogador sabe que encontrou uma boa história e que o suspeito está perto de confessar o crime.
  4. Vencer objeções
    Uma vez que o interrogador tenha desenvolvido todo um enredo com o qual o suspeito possa identificar-se, este poderá levantar objeções de natureza lógica e não meras negativas, algo como: "Eu nunca poderia ter estuprado alguém - minha irmã foi violentada e eu vi o tanto de angústia que isso causa a uma pessoa. Eu jamais faria isso com alguém". O investigador trata as objeções diferentemente das negações, já que as primeiras podem lhe render informações que servirão de munição contra o próprio suspeito. O interrogador pode dizer alguma coisa como: "Veja bem, é bom que você esteja me dizendo que jamais teria planejado esse tipo de coisa, que foi algo totalmente fora do seu controle. Você se importa com mulheres como se importa com sua irmã - foi só um erro isolado, não foi uma coisa repetida". Se o investigador fizer seu trabalho direito, a objeção pode até acabar parecendo uma confissão de culpa.
  5. Atrair a atenção do suspeito
    Neste instante, o suspeito já deve estar frustrado e inseguro a respeito de si mesmo. Ele pode estar à procura de alguém que o ajude a se livrar da situação. O interrogador tenta capitalizar essa insegurança fingindo estar do lado do suspeito. Ele tentará parecer ainda mais sincero à medida que continua a desenvolver o enredo e pode buscar uma aproximação física com o suspeito para envolvê-lo e tentar neutralizar qualquer tentativa de se livrar daquela situação. O interrogador pode usar gestos físicos de camaradagem e interesse, como pôr a mão no ombro do suspeito ou dar tapinhas em suas costas.


  6. O suspeito perde sua determinação
    Se a linguagem corporal do suspeito indicar rendição - cabeça entre as mãos, cotovelos apoiados nos joelhos, ombros arqueados - o interrogador aproveita a oportunidade para induzir o suspeito a confessar. Neste ponto, ele faz uma transição no enredo para oferecer algumas alternativas de possíveis motivos (ver o próximo passo) que forcem o suspeito a escolher uma razão pela qual teria cometido o crime. Aqui o interrogador faz todo esforço para estabelecer um contato olho a olho com o suspeito e assim aumentar seu nível de tensão e sua vontade de escapar da situação. Se nesse momento o suspeito começar a chorar, o investigador interpreta isso como um indicador positivo de culpa.
  7. Alternativas
    O interrogador oferece motivos contrastantes em relação a algum aspecto do crime, às vezes iniciando com um aspecto de menor importância para não intimidar o suspeito. Uma alternativa se apresenta socialmente aceitável ("foi um crime passional"), ao passo que a outra é moralmente repugnante ("você matou ela por dinheiro"). O investigador cria um contraste com as duas alternativas até que o suspeito dê sinal de que está escolhendo uma delas, algo como um aceno com a cabeça ou sinais ainda mais positivos de rendição. A partir daí o investigador começa a apressar as coisas.
  8. Fazer o suspeito começar a falar
    A confissão tem início no momento em que o suspeito escolhe uma das alternativas. O interrogador estimula que ele fale sobre o crime e pede a pelo menos duas outras pessoas que testemunhem a confissão. Uma dessas pessoas pode ser o outro investigador ali presente, a outra pode ser introduzida como fator de pressão para forçar uma confissão - ter de confessar diante de um terceiro investigador pode aumentar a tensão do suspeito e seu desejo de assinar uma documento para simplesmente poder sair daquele lugar. Introduzir outra pessoa na sala também faz o sujeito reiterar os motivos socialmente aceitáveis que teria para cometer o crime, reforçando a idéia de que a confissão é um bom negócio para ele.

  9. A confissão

    A etapa final de um interrogatório gira em torno de fazer com que a confissão seja admitida num processo criminal. O interrogador fará com que o suspeito escreva sua confissão ou a declare pessoalmente, registrando-a em vídeo. Nesse instante, o suspeito normalmente está disposto a fazer qualquer coisa para se ver livre do interrogatório. Ele confirmará que sua confissão é voluntária, que não foi coagido e assinará sua declaração na presença de testemunhas.

É preciso lembrar aqui que, se a qualquer momento o suspeito tiver a chance de requisitar um advogado ou invocar seu direito ao silêncio, o interrogatório precisa ser interrompido imediatamente. É por isso que é tão importante barrar as tentativas que o suspeito faz para falar logo nas primeiras etapas - o interrogatório termina se ele invocar seus direitos.

Os passos que acabamos de descrever representam algumas das técnicas psicológicas que os investigadores usam para extrair confissões dos suspeitos. Na prática, porém, um interrogatório nem sempre segue o manual de instruções. A seguir, vamos dar uma olhada em um interrogatório policial de verdade que terminou com uma confissão válida.

Interrogatório real:

Em 1º de setembro de 2003 o investigador Victor Lauria, do Departamento de Polícia de Novi, em Detroit, Michigan, usou seu treinamento na técnica de Reid para interrogar Nikole Michelle Frederick. Ann Marie, enteada de dois anos de Frederick, fora levada quase morta à sala de emergência de um hospital com sinais evidentes de graves maltratos físicos. Frederick era a principal responsável pela criança e estava cuidando de Ann Marie nos instantes que antecederam sua ida ao hospital. O interrogatório durou dois dias e Frederick foi acusada pelo crime logo depois da primeira sessão de perguntas.

O investigador Lauria começou com uma entrevista simples, falando sem intimidações com o objetivo de determinar o parâmetro comparativo das reações de Frederick:

    Lauria: Que nota você daria a si mesma como mãe?
    Frederick: Bem, acho que, acho que sou razoável. Quero dizer, não sou muito severa nem rigorosa, sabe como é, eu deixo passar algumas coisas.
    Lauria: Como você descreveria a Ann Marie?
    Frederick: Ela é uma criança muito difícil. Ah, chora o tempo todo. Sempre querendo colo... digo, Annie simplesmente, quer dizer, ela sempre parece que levou uma surra. Ela vive subindo nas coisas, né? Eu sempre encontro um machucado, um arranhão, essas coisas, nas costas dela. As canelas dela estão sempre roxas.
Como Frederick pareceu estar dando desculpas para as lesões de Ann Marie e procurando uma justificativa - "ela é uma criança muito difícil" - e uma vez que ela estava tomando conta da criança no momento em que as lesões aconteceram, Lauria pressupôs a existência de culpa e passou a interrogá-la. Ele partiu para uma sutil confrontação, deixando que Frederick soubesse de que modo ela seria descoberta:
    Lauria: Há toda uma linha de investigação policial que pode determinar como as lesões aconteceram e há quanto tempo elas existem.
    Frederick: ... Eu nem sei se vai ser possível descobrir exatamente o que aconteceu porque a única pessoa que realmente sabe é ela, e vai ser extremamente difícil fazer ela dizer se aconteceu alguma coisa, né? Não quero ser rude ou coisa parecida, só queria saber quanto tempo isso vai demorar.
    Lauria: Bom, como eu disse, uma das coisas que podemos fazer com elas [as lesões] é datar o tempo desde seu aparecimento e dizer se são lesões novas, que acabaram de acontecer, ou se são lesões que já estão começando a sarar; sabe como é, né, os médicos e legistas pesquisam esses tipos de coisas...
    Frederick: Certo.
    Lauria: Você consegue pensar em algum motivo pelo qual eles determinariam se as lesões foram causadas nas últimas 24 horas e por que alguém suspeitaria que você fez isso?
    Frederick: Hmm, exceto pelo fato de eu estar lá, não, nenhum.

    (...)

    Lauria: Você suspeita de alguém que tenha feito isso?
    Frederick: Não. É isso que estou tentando te dizer, eu acho muito difícil acreditar que alguém fez isso com ela porque, como eu disse, nós teríamos escutado alguma coisa também, sabe como é ...
    Lauria: De todas as pessoas que estavam na casa ou foram lá na noite passada, relacione todas aquelas que você garante que jamais teriam feito alguma coisa para machucar a Ann Marie.
    Frederick: ... Eu sei que o John não faria. Sinceramente, não acho que Brian tivesse feito também.
    Lauria: Quem poderia garantir por você?
    Frederick: Hmm, talvez o John. Mas veja só, eu não acredito exatamente no que o médico está dizendo e nem que as lesões foram causadas por alguém, seja o que for.

O investigador Lauria começou a desenvolver um enredo baseado numa situação de perda de controle - Frederick não teria premeditado os maltratos, ela simplesmente não estava raciocinando com clareza. Só que Frederick não gostou do enredo. Ela perguntou ao investigador por que ele não acreditava em sua versão. Lauria passou então a lidar com a hipótese de que Frederick teria machucado Ann Marie numa perda de controle momentânea, talvez de frações de segundo. Ele explicou que, sem sombra de dúvida, os ferimentos de Ann Marie não foram resultado de uma queda. Outra pessoa causou os ferimentos, possivelmente numa "fração de segundo" de irracionalidade. Frederick agora estava ouvindo, aparentemente presa à tese da "fração de segundo". Lauria desenvolveu ainda mais aquele enredo mencionando a natureza problemática de Ann Marie e como era difícil tomar conta dela - jogar a culpa na vítima, uma tendência que já havia sido demonstrada pela interrogada. Frederick passou a fazer movimentos positivos com a cabeça e Lauria suscitou uma alternativa. Ele disse a Frederick que "sem uma explicação para o acontecido, as pessoas imaginariam o pior". O contraste implícito já tinha sido apresentado: uma agressão cruel e premeditada contra uma perda momentânea de autocontrole. A abordagem acabou funcionando. Em seu relato, Lauria afirmou o seguinte:

    "Em dois dias de perguntas, Frederick jamais quis saber como Ann Marie estava passando. Já no fim da entrevista eu expus isso a ela. Ela tentou me convencer de que tinha perguntado várias vezes sobre os ferimentos de Ann Marie. Em seguida perguntou se eu sabia como a criança estava passando. Eu lhe disse que Ann Marie tinha sofrido morte cerebral e que provavelmente não teria condições de sobreviver. Aí Frederick declarou: 'Meu Deus. Eu vou responder por homicídio.' Depois disso eu passei mais 45 minutos jogando com outros enredos para tentar conseguir mais informações. Depois de negar várias vezes que tivesse mais informações ou envolvimento com os ferimentos de Ann Marie, ela acabou confessando que tinha sacudido a criança. Depois de confessar tê-la sacudido, Frederick não agüentou e começou a chorar. Então disse: 'Eu matei a garotinha. Eu matei a garotinha.'"

Ann Marie faleceu em decorrência dos ferimentos e Nikole Michelle Frederick enfrentou julgamento por homicídio qualificado. Ela foi condenada à prisão perpétua sem direito a liberdade condicional.

Obter a confissão de um suspeito é a melhor garantia de que ele será condenado em juízo e de que cumprirá a pena pelo crime que cometeu. O problema é que embora uma confissão pareça muito boa em juízo, isso não significa que ela seja um indicador infalível de culpa. Essa é a razão de grande parte da controvérsia que gira em torno das táticas de interrogatório policial.

Controvérsias:

A questão dos interrogatórios sempre foi um tema controverso. Todas as vezes que um agente de combate ao crime entra numa sala com um cidadão e fecha a porta, as pessoas começam a questionar o que acontece ali dentro. E todas as vezes que aquele agente deixa a sala com uma confissão, é certo que mais perguntas vão aparecer. A confissão foi obtida por coação? Será que a polícia violou os direitos do suspeito?

A verdadeira questão provavelmente é muito mais abrangente do que isso: será mesmo o interrogatório policial um processo justo? Como pode um sistema calculado para manipular e extrair confissões do suspeito não ser coercitivo? O debate sobre a imparcialidade e moralidade das técnicas de interrogatório policial é um debate permanente que possui muitas questões em primeiro plano.

Primeiramente, o interrogatório é um processo de culpa presumida. O objetivo é fazer o suspeito confessar. Uma vez iniciado o interrogatório, o investigador pode inconscientemente ignorar qualquer prova da inocência em sua busca por uma confissão. Trata-se de um fenômeno psicológico corriqueiro - as pessoas não raro "filtram" qualquer evidência que não se enquadre em seus pontos de vista predefinidos. O interrogatório é calculado para deixar o suspeito extremamente nervoso, porém sinais de estresse - como arrumar o cabelo e a inquietação - que são tomados como indicadores positivos de culpa podem muito bem indicar a tensão que sofre um inocente que está sendo acusado de um crime que não cometeu. Além disso, há o problema da coação latente. Embora os policiais possam não oferecer complacência de maneira explícita em troca da confissão, ou ameaçar com punição alguém que não está disposto a confessar, eles podem fazer promessas ou ameaças implícitas em sua linguagem e tom de voz. Por exemplo, quando o investigador Lauria disse a Nikole Frederick que "sem uma explicação para o acontecido as pessoas imaginariam o pior", Frederick pode ter interpretado isso como uma indicação de que se ela confessasse mas desse uma explicação para o crime, as conseqüências seriam menos severas do que se tivesse mantido a boca fechada.

De modo geral, grande parte da preocupação das entidades de defesa dos direitos humanos em relação ao interrogatório policial tem a ver com as nefastas semelhanças que as técnicas psicológicas guardam com as técnicas de lavagem cerebral. O interrogador está tentando influenciar o suspeito sem o seu consentimento, o que é visto como uma aplicação antiética das táticas psicológicas. Muitas das técnicas usadas para causar desconforto, confusão e insegurança no processo de lavagem cerebral são semelhantes àquelas utilizadas num interrogatório:

  • invadir o espaço pessoal do suspeito;
  • impedir o suspeito de falar;
  • usar alternativas de contraste extremo;
  • colocar a confissão como forma de escape.
Quanto maior for o nível de tensão do suspeito, menos chance ele terá de raciocinar de maneira crítica e independente, ficando assim muito mais suscetível ao sugestionamento. Isso é ainda mais verdadeiro quando se trata de um suspeito menor ou doente mental, pois nesse caso a pessoa pode não ter todas as ferramentas necessárias para reconhecer e combater as táticas de manipulação. Um processo calculado para criar tanta tensão em alguém que a pessoa confessará simplesmente para se ver livre da situação é um processo suscetível de gerar confissões falsas. Os pesquisadores estimam que entre 65 e 300 confissões falsas são extraídas por ano nos Estados Unidos. Eis algumas confissões falsas descobertas pelos investigadores:
  • Peter Reilly, 1973
    Peter Reilly tinha 18 anos quando sua mãe foi encontrada morta na casa da família. Depois de ser interrogado por oito horas pela polícia de Connecticut, ele acabou confessando o violento homicídio da mãe. Com base em sua confissão, um júri o condenou por homicídio culposo e ele passou três anos na prisão, até que um juiz lhe concedeu liberdade diante de novas provas que apontavam outra pessoa como autora do crime.
  • Earl Washington Jr., 1982
    Earl Washington Jr., um homem descrito pelos psicólogos como uma pessoa "levemente retardada", com um QI de 69, confessou ter estuprado e assassinado uma mulher de 19 anos depois de passar por um interrogatório. Ele foi condenado com base apenas em sua confissão e passou 18 anos na prisão, metade desse tempo no corredor da morte. Apenas nove dias antes da data marcada para sua execução o governador da Virgínia concedeu-lhe indulto porque evidências baseadas em DNA revelaram que o verdadeiro agente do crime tinha sido outro homem.
  • Os "Cinco do Central Park", 1989
    Após mais de 20 horas de interrogatório, cinco adolescentes - Raymond Santana (14), Kharey Wise (16), Antron McCray (16), Kevin Richardson (14) e Yusef Salaam (15) - confessaram ter estuprado e espancado uma mulher que fazia cooper no Central Park, em Nova Iorque. Eles passaram entre 6 e 12 anos na prisão (dos cinco, quatro foram julgados quando ainda eram menores de idade) até que, em 2001, outro homem confessou ter praticado o crime. Evidências de DNA confirmaram que este outro homem era, de fato, o estuprador do Central Park.
  • Michael Crowe, 1998
    Michael Crowe tinha 14 anos quando a polícia o interrogou sem a presença de qualquer de seus pais ou outro adulto na sala de interrogatório. Ele acabou confessando ter esfaqueado sua irmã de 12 anos até a morte depois que o interrogador o iludiu dizendo que havia provas materiais contra ele. Crowe foi indiciado pelo crime, mas nas audiências pré-julgamento o juiz entendeu que sua confissão tinha sido involuntária. Evidências de DNA posteriormente levaram a polícia até o homem que realmente assassinou a garota.

O interrogatório de Michael Crowe foi todo registrado em vídeo sendo, e a fita auxiliou o juiz a definir que a confissão tinha sido involuntária. O simples fato de registrar a confissão em vídeo não atesta muita coisa sobre a legalidade do processo que resultou nela, sendo essa a razão por que os críticos das técnicas de interrogatório policial exigem a gravação obrigatória do início ao fim de todos os interrogatórios como um passo a ser tomado em direção à honestidade do processo. Outra solução possível para o problema seria treinar os policiais para reconhecerem indícios sutis de doença mental que tornam uma confissão falsa mais provável. Muitos membros da comunidade de repressão ao crime invocam os elevados custos como justificativa para não se implementar esse tipo de solução e argumentam que o problema das confissões falsas é exagerado pelos críticos. Ainda assim, a maioria das pessoas acha que uma única confissão falsa que resulte em condenação já é demais.

www.delegados.org

terça-feira, 29 de setembro de 2009

O aborto é um crime no Brasil pelo qual ninguém vai preso. A pena mínima cominada em nosso Código Penal para o aborto provocado pela gestante (art. 124) e para o aborto provocado por terceiro (art. 126) é de 1 ano de prisão, o que confere ao réu primário e de bons antecedentes o direito à suspensão condicional do processo.

Quanto ao aborto provocado pela gestante, ainda que a pena fosse superior, uma condenação encontraria óbice na questão probatória, pois dificilmente se conseguiria provar inequivocamente a intenção da acusada de provocar o aborto. Na dúvida se o aborto foi uma fatalidade ou intencionalmente provocado, o tribunal acabaria optando pela absolvição.

A pretensão estatal de controlar o corpo da gestante por meio da imposição de uma sanção penal é no mínimo ingênua, para não dizer burra. Em tese, a pena funcionaria como um elemento de dissuasão para que a gestante não cometesse o aborto. Na prática, se a mulher está suficientemente desesperada para sacrificar a vida potencial de um filho, pouco temerá uma hipotética e improvável prisão futura.

Por que então eleger 28 de setembro o Dia pela Descriminalização do Aborto na América Latina e Caribe, se a existência da pena não evita o aborto e um processo judicial por este crime está fadado a terminar em pizza, ou melhor, em cesta básica?

Para garantir às brasileiras um direito fundamental que as mulheres da maioria absoluta dos países desenvolvidos – entre eles EUA, Canadá e praticamente toda a Europa – já possuem: o direito de realizar o aborto com adequada assistência médica.

É preciso que se entenda que a gestante que decidir interromper a gravidez abortará com ou sem auxílio médico. O Estado não é senhor de seu corpo e jamais poderá vigiá-la 24 horas por dia. Por outro lado, informações sobre métodos abortivos são fartamente conhecidas e os riscos que podem representar à saúde da mulher, na maioria das vezes, assim como a sanção penal, não são suficientes para convencê-la a mudar de idéia.

“Entre os métodos mais comuns pode-se referir o uso de plantas abortivas como a arruda (Ruta graveolens), erva-santa-maria (Senebiera pinnatifida), tanaceto (tanacetum vulgaris), sabina (Juniperus sabina) ou o fungo cravagem do centeio (Claviceps purpurea). Outros expedientes usados – e que resultam frequentemente em tragédia, são a introdução de objectos no canal vaginal, como agulhas de tricô, tesouras ou antenas, que provoquem a morte do feto. Um medicamento usado no tratamento de úlceras gástricas, o cytotec, com misoprostol como princípio activo, é também vendido de forma ilegal para provocar abortos.” (WIKIPEDIA)

É claro que estes métodos só são usados pelas gestantes que não possuem condições financeiras para arcar com o alto custo de um aborto clandestino em uma das muitas maternidades que oferecem o serviço com total sigilo e segurança. As demais estão sujeitas a uma pena não escrita, pois vedada constitucionalmente, mas comum na prática da abortos clandestinos: a morte. Na América Latina, 21% da mortalidade materna tem como causa as complicações do aborto realizado de forma insegura.

A criminalização do aborto para a mulher rica significa tão-somente um aumento no custo do procedimento cirúrgico que, por sua clandestinidade, tende a se valorizar. A criminalização do aborto para a mulher pobre significa a negação do direito à saúde garantido no art.6º da Constituição da República. É aqui que a criminalização do aborto exibe seu perverso caráter classista, pois somente as mulheres pobres sentem seus efeitos.

A criminalização do aborto não evita o aborto, mas tão-somente obriga a mulher a realizá-lo na clandestinidade. A discussão sobre a descriminalização do aborto não é uma discussão sobre o direito ou não de a gestante abortar, mas sobre o direito ou não de a gestante ter auxílio médico para abortar. Com a descriminalização, os abortos continuarão a ser praticados, tal como hoje o são, mas a mortalidade materna será substancialmente reduzida.

Para os homens, que sempre puderam escolher entre abandonar suas parceiras grávidas ou reconhecer o filho, e para as mulheres ricas, que sempre tiveram o direito de escolha, a criminalização do aborto pode significar uma opção “pró-vida”. Já para as mulheres pobres, a descriminalização do aborto não é uma garantia “pró-escolha”, pois o aborto em regra não lhes é uma opção, mas uma necessidade. Para estas milhares de mulheres latino-americanas miseráveis, é a descriminalização do aborto a verdadeira defesa “pró-vida”.


Túlio Vianna

sábado, 12 de setembro de 2009

Quebrando tradição secular de nosso Direito Penal, a Lei Ordinária Federal n. 12.015, de 07 de Agosto de 2009, publicada no Diário Oficial da União do dia 10 do mesmo mês e ano, promoveu profunda e inédita alteração no Art. 213 do Código Penal, e, de quebra, revogando o Art. 214 do mesmo Diploma.

Eis as alterações:

“Estupro

Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso:

Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos.

§1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:

Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.

§2º Se da conduta resulta morte:

Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos”.

Para uma melhor compreensão da inovação legislativa trazida à baila, transcreve-se, também, a redação originária do dispositivo incriminador acima, que era vazada nestes termos seguintes:

“Estupro

Art. 213 - Constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça:

Pena - reclusão, de seis a dez anos”.

De um simples cotejo da redação dos dispositivos legais reproduzidos, a originária e a agora vigente, percebe-se, claramente, que a elementar do tipo do delito de Estupro, que revelava seu sujeito passivo, “mulher” foi substituída pela expressão “alguém”.

Revelando que, em vista disso, o sexo do ofendido será indiferente para a caracterização do crime de Estupro. Que, agora, como visto, pode ser cometido tanto contra a mulher, como também contra o homem.

A própria revogação do Art. 214 do Código Penal, deslocando parte de suas elementares para o delito do Art. 213 desse mesmo Diploma repressivo, qual seja, “ato libidinoso”, sob o mesmo e único nomem juris de “Estupro”, não desafia qualquer dúvida.

Assim, a revogação do Art. 214 não deixará ao desamparo jurídico-penal aquela vítima do cancelado delito de Atentado Violento ao Pudor, que consistia no constrangimento violento à prática de ato libidinoso diverso da conjunção carnal. Uma vez que tanto a conjunção carnal não consentida, assim como qualquer “outro ato libidinoso” forçado através da violência ou grave ameaça restaram tutelados em um único dispositivo penal, sem importar em hipótese de abolitio criminis.

O que, provavelmente, despertará grande dúvida na comunidade jurídica nacional, será a definição do que agora seja “conjunção carnal”. A expressão “outro ato libidinoso” prevista na parte final do novo Art. 213, ao contrário do que se possa imaginar, não facilitará uma imediata solução para o impasse criado pela Lei n. 12.015/2009.

Se a expressão “conjunção carnal” fosse unicamente reveladora da cópula vaginal, ou seja, a introdução do pênis na cavidade vaginal da mulher, não seria necessária a outrora presença da elementar “mulher” na redação original do Art. 213 do Código Penal. É regra principiante em Direito que a Lei não contém expressões inúteis. Se a tão-só introdução do pênis na cavidade vaginal da mulher, mediante violência ou grave ameaça, traduzisse a definição de conjunção carnal para a configuração do Estupro, bastaria que o tipo do Art. 213 enunciasse “constranger à conjunção carnal”, como, mutatis mutandi, faz o vigente Art. 123 do Código Penal, que tipifica o crime de Infanticídio (Art. 123 - Matar, sob a influência do estado puerperal, o próprio filho, durante o parto ou logo após), sem fazer menção ao sexo de seu sujeito ativo (agente), uma vez que só a mulher pode estar “sob a influência do estado puerperal”.

Poderá se argumentar que a elementar “mulher”, insculpida na redação originária do Art. 213, consistiu em expressão baldada proposital, necessária para a consolidação do que seja conjunção carnal para o legislador de 1940, repudiando, assim, sua extensão ao coito anal. E que sua presença no atualíssimo Art. 213, do modo como redigido, já possui sua definição precisa (conjunção carnal = cópula vaginal), descartando-se, hoje, a necessidade da complementação do núcleo “constranger” pela partícula “mulher”, evitando-se, por esse modo, a redundância de palavras. Reservando-se cientificamente o coito anal para a elementar da prática de “outro ato libidinoso” disposta no final da nova redação do Art. 213. Estupro, assim, seria espécie de violação da dignidade sexual, tendo a conjunção carnal (cópula vaginal) e a prática de ato libidinoso diverso (coito anal) como suas sub-espécies. Preservando-se, assim, toda a dogmática penal do Século passado, mas, em vista disto, tolerando agora a possibilidade da continuidade delitiva do Art. 71 do Código Penal (crimes da mesma espécie).

Outros poderão alegar que o legislador de 1940, mesmo concebendo a possibilidade do coito anal configurar a conjunção carnal, optou por tutelá-lo juridicamente sob outra rubrica, a do “Atentado Violento ao Pudor”, revelando o sincero desprezo e aversão da época às livres práticas homossexuais. Desejando, destarte, deliberadamente o legislador da época que a cópula vaginal e o coito anal recebessem tratamento apartado. Afinal, extinguia-se a punibilidade pelo casamento do agente com a vítima mulher, nos crimes contra os costumes, e não pela existência de relação homoafetiva entre homens, a revelar a repulsa do legislador da época ao coito homossexual consentido, entre vítima e ofensor do sexo masculino, mesmo posteriormente ao delito e com coabitação harmoniosa, que não se convertia em causa de extinção da punibilidade, muito menos por política criminal. Assim, para alguns, enquanto no ordenamento jurídico positivo brasileiro não for expressamente reconhecida e tolerada as práticas homossexuais, principalmente pela regulamentação e reconhecimento do casamento entre homens, deverá ser temporariamente desprezada pela jurisprudência e doutrina a concepção de coito anal como conjunção carnal, tendo este que provisoriamente ser tutelado pela elementar “outro ato libidinoso”, quando perpetrado através de violência ou grave ameaça. Tudo, até nova e já aguardada legislação inovadora, quando, assim, a prática de coito anal mediante violência e grave ameaça deverá ser deslocada para a elementar da conjunção carnal.

Ainda, certa doutrina vanguardista e inovadora, ou mesmo mais liberal, poderá aduzir que a Lei n. 12.015/2009 promoveu verdadeira ruptura com os costumes e concepções da homofóbica sociedade brasileira de 1940. E que a expressão “conjunção carnal” não deverá ser desvendada pela Medicina Legal ou pelo Direito, eis que sua complexa definição seria algo poético, relativo ao sentimento do belo e agradável, ou mesmo compreendida dentro do espírito fantasioso dos românticos. O que na sociedade contemporânea e plural de hoje, livre de preconceitos, deverá elastecer a expressão conjunção carnal, traduzindo-a a todo tipo de penetração íntima profunda entre amantes. Acabando por reservar à elementar “outro ato libidinoso” a outras práticas que não a cópula vaginal e o coito anal, como, p. ex., o sexo oral, o coito inter femora, a masturbação, os toques e apalpadas nas genitálias, os contatos voluptuosos, a contemplação da lascívia, dentre outras.

Como se vê, a Lei n. 12.015/2009 trará profundas indagações ao seu intérprete. Mas, de toda sorte, extinto o delito de Atentado Violento ao Pudor, deslocada sua expressão “ato libidinoso” para o novo Art. 213 do Código Penal, tudo sob a mesma rubrica de “Estupro”, concluímos que, hoje, o homem também pode ser “estuprado”. Revelando, aí, ligeiro concurso formal, tratado no Art. 70 do Código Penal, uma vez que teremos dois bens jurídicos violados, mediante uma só ação do agente, quais sejam, a liberdade sexual da pessoa e, também, a gramática da língua portuguesa.


CARLOS EDUARDO RIOS DO AMARAL

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

... falando em incesto:

no Brasil

· a violência física e sexual contra crianças mata 100 crianças por dia;

90% das crianças abusadas sexualmente conhecem e respeitam seu agressor;

· 69,6 do delito são cometidos pelo pai biológico;

· 21% das práticas incestuosas são cometidas pelos pais adotivos;

· 0,6% dos casos de incesto são cometidos pelo pai adotivo;

· Não há registro de abuso sexual por parte de homossexuais com relações aos filhos, quer biológicos quer adotados;

· a cada ano, 300 mil meninas são vítimas de incesto: 100 mil tentam o suicídio;

· mais de 1/3 das notificações de abuso sexual envolvem crianças de até 5 anos;

· no RS a cada dia ocorrem três crimes sexuais cujas vítimas são crianças ou adolescentes;

· até os 18 anos, 1 em cada 4 meninas e 1 em cada 10 meninos são vítimas de abuso sexual;

· pelo telefone 0800 99 0500 é que se deve denunciar o abuso sexual infantil;

no mundo

· a cada hora uma criança morre torturados pelos próprios pais;

1 milhão de crianças e adolescentes são explorados sexualmente: 76% são meninas e 37% têm menos de 11 anos;

· 85 a 90% dos agressores sexuais são conhecidos da criança;

· somente 10 a 15% das práticas incestuosas são denunciadas;

· 20% das mulheres e de 10 a 15% dos homens foram vítimas de incesto da infância ou na adolescência;

· 80% das meninas aliciadas para a prostituição sofreram abuso sexual praticado por pais, irmãos, avós ou outros parentes;

· 69,1% das crianças abusadas sexualmente têm menos de 11 anos;

Saudações a todos!

Resolvi atualizar aqui. Estava agora olhando o site da Maria Berenice Dias e achei um artigo bem interessante sobre uma música "E porque não?- Banda Bide".
Alguém lembra dessa múscia? Ela é antiga já.
A letra dela é totalmente ridícula! E com certeza um convite ao incesto.

Postarei o artigo da Maria B.D., que é digno de receber aplausos.

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E por que não?[1]


Não, simplesmente porque não!

Não há como permitir que se faça apologia ao incesto.

Não dá para banalizar o mais hediondo crime praticado contra crianças e adolescentes.

Não é possível admitir que adentre em todos os lares claro apelo de conteúdo erótico dirigido a crianças.

Não se pode violentar os ouvidos de filhos para que cedam à lascívia do seu pai.

Não é admissível que seja divulgada a cantada para minha menina, para ver se ela entra na minha.

Não pode ser outra pessoa que não o pai quem tem o mesmo sangue, quem conhece desde pequena, quem dá o nome.

Não dá para deixar de reconhecer que, quem está apaixonado pelo jeito que a sua menina fala, olha e caminha, tem desejo de ordem sexual.

Não há como não ver que, quem ama as pernas fininhas de sua menina e adora vê-la com suas colegas na escolinha é um pedófilo.

Não ao incesto, não à pedofilia é um compromisso de todos, pois é indispensável assegurar o desenvolvimento sadio dos cidadãos de amanhã.

Não dispõe, quem faz da música meio de comunicar-se com a população, do direito de afrontar os mais elementares princípios éticos e incitar práticas criminosas.

Sim, merece aplauso a iniciativa das entidades de defesa de crianças e adolescentes que, em boa hora, denunciaram ao Ministério Público a banda Bidê ou Balde que gravou a música em sua versão original.

Não é a volta da censura.

Não se trata de afronta à garantia de liberdade de expressão.

Não merece ser chamada de expressão artística flagrante ameaça à dignidade de crianças e adolescentes que merecem, com absoluta prioridade, a especial proteção do Estado.

Assim, nem no bidê nem no balde. Talvez o único lugar que mereça tamanha sordidez seja a lata de lixo. E por que não?


[1] Artigo sobre a polêmica gerada sobre a letra da música "E porque não?" da banda gaúcha Bidê ou Balde, que integra o CD Acústico MTV Bandas Gaúchas que foi lançado recentemente


Maria Berenice Dias

Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul

Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM

www.mariaberenice.com.br


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